Reportagem: Marcella Franco
Imagens: Centro de Memórias do Instituto Butantan
O Hospital Vital Brazil (HVB), único serviço de saúde dedicado a pacientes acidentados por animais peçonhentos do mundo, celebra em 2025 seus 80 anos de existência. Como tudo no Instituto Butantan, o HVB surgiu para atender a uma necessidade de saúde pública, e hoje em dia realiza cerca de 2.500 atendimentos por ano, avaliando as suspeitas de envenenamento dos pacientes que procuram seus serviços 24 horas por dia. Os profissionais do Hospital Vital Brazil também prestam apoio para equipes médicas de todo o país, ajudando no diagnóstico e indicação de tratamento. Deste modo, o hospital atua não apenas como uma unidade de saúde, mas como símbolo da conjunção entre assistência, pesquisa clínica e formação profissional.
Foram muitos momentos marcantes nestes 80 anos de trajetória – conheça abaixo alguns deles.

Dr. Guaraciaba, médico e responsável pelo Hospital examinando paciente. Dona Lourdes, auxiliar de enfermagem, preenchendo o prontuário
Em 1957, o cientista brasileiro Warwick Estevam Kerr cometeu um deslize de grandes proporções: 26 colmeias de abelhas africanas que estavam sob sua responsabilidade escaparam de um apiário experimental em Rio Claro, no interior de São Paulo. Conhecidas por sua agressividade, as abelhas se espalharam, cruzaram sem controle com abelhas europeias que já viviam no Brasil, e deram origem a híbridos chamados de abelhas africanizadas.
Warwick foi o primeiro diretor científico da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), e presidiu a Sociedade Brasileira Para o Progresso da Ciência (SBPC). Ele havia viajado à África como parte de uma pesquisa para melhorar a produção de mel no Brasil, que andava baixa devido à pouca adaptatividade das abelhas europeias ao clima tropical. No continente africano, Warwick separou algumas abelhas rainhas e as enviou ao Brasil. Queria cruzá-las com as europeias, selecionando as características desejáveis e eliminando as indesejáveis.
Até hoje não se sabe exatamente como aconteceu a fuga das africanas, mas os acidentes que se sucederam viraram um problema de saúde pública. No começo da década de 1960, o Hospital Vital Brazil passou a realizar atendimentos de pessoas picadas por esses insetos -- ocasionalmente até hoje chegam ao hospital pacientes picados por múltiplas picadas de abelhas. Na década de 1970, as abelhas já haviam se espalhado pela América do Sul. Nos anos 1980, chegaram à América Central, e nos 1990, ao sul dos Estados Unidos. Nos jornais e revistas, elas eram frequentemente chamadas de “the killer bees”, ou seja, “as abelhas mortais”.

Paciente do sexo feminino atendida no HVB em agosto de 1965 com múltiplas picadas de abelhas, com 1.037 ferrões retirados
Em março de 1960, foi inaugurado um heliponto ao lado do Hospital Vital Brazil. A ideia de socorrer vítimas de animais peçonhentos usando o transporte aéreo surgiu depois que um grupo de oficiais visitou o Instituto Butantan de helicóptero, e precisou pousar em um campo improvisado.
Os registros históricos mostram que dois casos graves chegaram pelos ares logo após a inauguração: o militar Manoel Bezerra Torres, de 18 anos, picado por uma Phoneutria fera (aranha-de-bananeira), e a menina Wanda Maria de Morais, acidentada por uma Crotalus durissus terrificus, nome científico da cascavel. O caso da criança virou até notícia de jornal.

Nos atendimentos médicos, o procedimento padrão quando se identifica que uma pessoa foi picada por um animal peçonhento é definir o tipo de soro e o número de frascos a ser usado, sempre de acordo com o animal e a gravidade do envenenamento. O soro é então diluído e administrado por via intravenosa (direto na veia) lentamente, por gotejamento. Acontece que as coisas não foram sempre assim.
Antigamente, havia a suspeita de que os soros poderiam causar reações que comprometessem a vida dos pacientes. Fosse naqueles com histórico de alergia prévia, ou nos que já tivessem sido expostos anteriormente sem reação, a conduta era sempre a mesma: administrar o soro por via subcutânea – ou seja, direto no tecido adiposo, que fica logo abaixo da pele. A intravenosa até já era tida como mais eficaz, mas ainda existia receio de utilizá-la em todos os casos.
O problema era que, ao aplicar o soro por via subcutânea, a absorção se tornava mais lenta, atrasando também a melhora do quadro e causando dor, dada a injeção de grandes volumes. Aos poucos, o conhecimento científico foi evoluindo em relação à segurança do produto, e na década de 1980 o Hospital Vital Brazil adotou como padrão a administração intravenosa, seguindo o que também passaram a preconizar os manuais do Ministério da Saúde.

Aplicação de soro por via subcutânea na coxa
O primeiro caso de Covid-19 no Brasil foi confirmado em 26 de fevereiro de 2020. Em 11 de março do mesmo ano, a OMS declarou oficialmente a pandemia. Durante os meses que se seguiram, o Hospital Vital Brazil operou como ponto de apoio ao ambulatório do Instituto Butantan, fazendo o atendimento aos funcionários especialmente nos momentos de maior fluxo de pacientes, e nos dias e horários em que o ambulatório não estivesse operante.
Outro momento marcante na história do HVB envolvendo uma doença infecciosa havia sido em um surto de febre maculosa nos anos 2000. Em um caso específico, em 2005, médicos do hospital diagnosticaram a doença em um funcionário do próprio Butantan, que tinha febre alta e manchas espalhadas pelo corpo. Ele havia acabado de retornar de um trabalho de campo em Avanhandava (SP), região endêmica para os carrapatos transmissores da febre maculosa. Junto do aparecimento dos sintomas, o rapaz também havia se dado conta de que voltara da viagem com oito carrapatos presos à pele. Imediatamente os médicos do HVB implementaram o protocolo para a doença, e o paciente se curou pouco tempo depois.
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Lagarta do gênero Lonomia, capaz de provocar quadros de envenenamento grave em seres humanos (Foto: André Ricoy)
No fim da década de 1980, registros de acidentes com lagartas começaram a surgir de forma crescente no Rio Grande do Sul e em Santa Catarina. Os casos mais graves eram relacionados às do gênero Lonomia que, no Brasil, são conhecidas popularmente como taturanas. Foi essa explosão de casos graves que impulsionou o desenvolvimento do soro antilonômico pelo Butantan no início dos anos 1990.
De 1978 a 1984, por exemplo, foram relatados 26 casos hemorrágicos e 12 óbitos em humanos, causados pelos contatos das cerdas de Lonomia aquelous, provenientes do sudeste do Amapá e noroeste da Ilha de Marajó. Já entre 1997 e 1999, em uma janela de apenas dois anos, o número de casos no Brasil foi de 159.
Um pouco antes disso, quando as lagartas ainda não eram classificadas como animais de importância médica, o Hospital Vital Brazil recebeu um paciente ferido no braço que relatava ter encostado em uma taturana. Como ainda eram raros os casos na região Sudeste, os médicos imaginaram se tratar de uma confusão por parte do paciente, e que o quadro seria na verdade um envenenamento por jararaca – havia edema, manchas arroxeadas e sangue incoagulável. Foi, então, aplicado o soro antibotrópico, mas não houve evolução positiva.
Ciente de publicações da década de 1970 que falavam de lonomias na Venezuela, e de outras do começo dos anos 1980 sobre as lagartas presentes na Ilha de Marajó, na Amazônia, a médica Fan Hui Wen se pôs em alerta. Fan, que hoje é diretora técnica de Produção de Soros Hiperimunes no Instituto Butantan e à época era médica no HVB, entendeu que o paciente de fato tinha encostado em uma lonomia, e não sido picado por uma serpente. Ela e outros médicos mantiveram o paciente em observação e fizeram os cuidados possíveis (o soro específico só surgiria um tempo depois), até o momento da alta.
O Programa Nacional de Ofidismo (PNO) foi implementado no Brasil em 1986 pelo Ministério da Saúde, como resposta a uma grave crise de abastecimento de soros. Um dos pilares do Programa foi a criação de sistema de informação, no qual a notificação dos acidentes ofídicos no país se tornou compulsória. Outro objetivo primordial foi a instituição de diretrizes clínicas e terapêuticas para o manejo dos acidentes, como o uso de soro antiofídico e a importância do atendimento médico imediato. A educação popular foi baseada no incentivo às medidas de prevenção, como o uso de equipamentos de proteção.
O Butantan, antes mesmo da década de 1980, tinha um grupo de atividades educativas para a difusão do conhecimento sobre o ofidismo no Instituto Butantan. Os médicos do Hospital Vital Brazil faziam parte deste grupo, e realizavam palestras e cursos não só para os profissionais especializados, mas também para o público leigo. Os eventos, que aconteciam todo mês e tinham entrada gratuita, ficavam lotados – participavam deles bombeiros, crianças, donas de casa… As atividades reforçavam o papel do Hospital Vital Brazil, e do Instituto Butantan, como divulgador científico e referência em envenenamentos por animais peçonhentos.

No final da década de 1980, a Universidade de Oxford e a Liverpool School of Tropical Medicine and Hygiene, duas renomadas instituições britânicas, propuseram um projeto de pesquisa clínica em conjunto com o Butantan. Foi o primeiro projeto do tipo realizado com colaboração internacional dentro do Hospital, e o objetivo era comparar a segurança e eficácia do soro antibotrópico produzido pelos três laboratórios produtores de antivenenos, após a padronização dos processos de produção estabelecido pelo PNO. O estudo, denominado “Butantan Antivenom Study” (BAVS), envolveu diversos pesquisadores dos laboratórios de Fisiopatologia e Imunopatologia, resultando em diversas publicações internacionais, sendo o artigo científico principal chamado pelo grupo de pesquisa de BAVS-mãe.



